domingo, 2 de outubro de 2011



"- Por que você toma tanto calmante? perguntou ele sorrindo.
- Ah, disse ela com simplicidade, é assim: vamos dizer que uma pessoa estivesse gritando e então outra pessoa punha um travesseiro na boca da outra para não se ouvir o grito. Pois quando tomo calmante, eu não ouço meu grito, sei que estou gritando mas não ouço, é assim, disse ela ajeitando a saia."

Clarice Lispector em "A Maça no Escuro", Editora Rocco, p. 187
Tive uma amiga chamada Ana – Ana Maria Scaraboto Asef. Digo tive, infelizmente, e não tenho, porque a Ana morreu, há pouco mais de um ano. Um dia, me contaram, sentou na sala, colocou a mão sobre o coração e disse: “Estou sentindo uma coisa estranha aqui". Fechou os olhos e morreu. Como um passarinho, diria minha avó, e eu sempre achava esquisito: passarinho, pra mim, morria com pedrada de bodoque. Não era nada suave, imagino. Prefiro pensar que Ana morreu como uma fada, se é que as fadas morrem. Mas isso é detalhe. O que importa é que Ana era mesmo meio fada.


Durante anos, ela estudou astrologia, quiromancia, numerologia, cabala, radiestesia, essas coisas. Estudou porque gostava, porque era mesmo meio fada. Não por causa de dinheiro. Ana era uma advogada muito conceituada. Bem, com tanto estudo, ela acabou formulando suas próprias teorias: descobriu as cores do tempo, as cores das horas, as cores dos nomes, as cores dos destinos. Quando nos conhecemos e ficamos amigos à primeira vista, batizei as teorias da Ana de cromologia (ou “conhecimento das cores”). Ela gostou do nome, costumava usá-lo quando começou a dar entrevistas e a ficar muito conhecida. Estava preparando um livro, quando um dia veio a morte e crau! De alguma forma, devia estar certa que fosse naquele dia, daquele jeito – levando a mão no coração, suspirando e fechando os olhos. Como uma fada.

Ana ficou em mim de muitas formas. A mais constante delas é que dei para pensar nas pessoas – não só nas pessoas, mas também nas situações, nas emoções – como tendo cores. Metade por causa das teorias de cromologia, metade por pura piração (ou poesia: quem é capaz de estabelecer a diferença?). Claro, tudo isso misturado com gosto pessoal. Que, você sabe, não se discute.

Então, acordar de manhã bem cedo, sair para a rua antes que as lojas se abram, com poucas pessoas e certa névoa ainda no ar, para mim é indiscutivelmente branco. Como são alaranjadas certas noites de energia solta no ar, na mesa de um bar ou assistindo a algum show. Como são verde bem clarinho certas tardes, principalmente as de inverno, quando há sol e, de repente, as coisas meio que param, infinitamente calmas. Há também momentos marrons: tentar trocar a fita corretiva desta máquina elétrica, coisa que nunca consigo fazer direito, embora consulte sempre as instruções. Esperar horas numa fila de banco, tentar atravessar a avenida Nove de Julho, em São Paulo, para mim, é completamente marrom. Quando surge alguma irritação, então vira marrom riscado de vermelho. Mas, vermelho total, só quando pinta ódio, vontade de gritar e bater. Filme de Stallone ou Schwarzenegger é vermelho – nada a ver com ideologia.

Tem também vozes, caras, pessoas. Suzanne Vega cantando Tom’s Diner é azul bem clarinho, azul-aquarela, meio transparente, quase branco. Já Vida Bandida, com Lobão, pende mais para o bordô. E Billie Holiday será sempre roxo, às vezes mais carregado, com a voz mais rouca das últimas gravações, às vezes suavemente violeta. A cara de Jânio Quadros varia do cinza-chumbo ao negro, mas a de Xuxa é enjoativamente rosa-choque, daquele que Jayne Mansfield adorava.

Destinos também têm cores – não sei até que ponto você escolhe ou as coisas se armam e, quando você se dá conta, a cor já está ali, definitiva. Sarney, por exemplo, acho que escolheu ou foi vítima de um destino marrom. Pelo menos a sensação que ele me dá é a mesma de tentar atravessar aquele corredor de ônibus na Nove de Julho. Aliás, políticos quase sempre são marrons. Elba Ramalho – quer apostar? – é puro amarelo: amarelo-grito, amarelo-estridente. Augusto de Campos me parece mais um destino azul-marinho, todo sóbrio. Caetano Veloso: azul-claro, às vezes vermelho. Lygia Fagundes Telles: puro bege.

E assim fico pensando em Ana. Que tinha um destino não de uma, mas de todas as cores. Quem dera o meu, o seu, o nosso fossem assim também. Que marrom não há de ser, nem cinza-chumbo. Pois, quando eu daqui, você daí, tão vadio quanto eu, pára e lê – deve haver alguma cor nisso. Espero que bem clarinha.

                                                   (HV – Agosto/setembro 1987)